“O Cristo que nos salva e nos inspira foi quem primeiro radicalizou. Seu grito de desamparo na Cruz, recusando o aconchego e a proteção do Estado, fez romper o véu do templo e quedar-se impotente o poder arbitrário ali representado na pessoa do Centurião que se viu obrigado a confessar a força do novo poder, da nova vida, do novo reino de justiça e paz. Quem consegue ver Cristo transfigurado não pode se instalar, construir tendas e desfrutar a delícia da brisa das altas montanhas, mas tem que se envolver no redemoinho dos vendavais, descer a serra e encontrar os emudecidos, os enlouquecidos, os estropiados, os empobrecidos para curar-lhes suas enfermidades. Tem que assentar à mesa com pecadores e publicanos, expulsar os vendilhões dos templos e eliminar as figueiras estéreis”. (Elias Boaventura).
Hoje, o professor Elias Boaventura completaria 75 anos. Entretanto, duas semanas antes de completar mais um ano de vida, ele saiu de cena para atuar no palco da eternidade. Diante da morte de alguém, é comum a expressão popular: partiu para o descanso eterno. Não estou seguro se essa expressão se aplica ao professor Elias Boaventura. Quem o conheceu de forma mais próxima e intensa, sabe que ele sempre foi um ser inquieto e que se incomodava com situações de injustiça ou de exclusão. Pautou boa parte de sua vida por temas de interesse público. Era apaixonado pela vida e lutou incansavelmente pela concretização do “Bem Comum” (no latim: res publica). Sempre sonhou com um mundo mais humano, inclusivo e justo. A citação acima (que é um pequeno trecho do discurso do professor Elias Boaventura como paraninfo da turma de bacharelandos em Teologia de 1980 da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista) retrata um pouco de sua visão teológica e de sua opção ideológica. Tive a honra de ouvi-lo nessa ocasião, pois era um dos formandos. Depois, tive o privilégio de tê-lo como orientador do meu trabalho de conclusão do Curso de Especialização em Administração Escolar (Lato Sensu) e da minha dissertação de Mestrado em Filosofia da Educação, ambos cursados na Unimep. Mais tarde, ele foi um dos membros da banca do meu doutorado em Ciências da Religião. Portanto, tive a felicidade de ter a presença do professor Elias Boaventura em boa parte de minha formação acadêmica.
Por ocasião de seu ofício fúnebre, o Bispo Paulo Ayres Mattos afirmou que a principal característica do Elias era a sua dimensão profética. Na tradição judaico-cristã, o profeta era aquele que não se intimidava diante dos poderes constituídos e denunciava todas as formas de injustiça, corrupção e tudo aquilo que impedia o estabelecimento da paz (shalom, que no hebraico significa “bem estar social”). O profeta também anunciava o que precisava ser feito para melhorar as condições de vida e estabelecer a paz e a justiça. Era sempre alguém com carisma e com reconhecimento popular. Precisava ser duro em suas denúncias, mas, ao mesmo tempo, ser portador da esperança, anunciando que tempos melhores viriam.Sendo assim, concordo plenamente com o Bispo Paulo Ayres – o professor Elias Boaventura foi um profeta. Essa característica o tornou um ser humano diferenciado e respeitado por muitos. Além de profeta, o professor Elias foi também um protestador, ou seja, sempre que podia mostrava a sua indignação protestando contra as situações de morte que ferem a dignidade humana e a vida em todas as suas dimensões.
No final do ano passado, Contardo Calligaris, em sua coluna semanal na Folha de São Paulo, relatou que a revista “Time”, como acontece há várias décadas, escolheu para a capa de uma de suas edições de dezembro “a pessoa do ano”, que em 2011 foi o “protestador” (The Protester). Ao invés de escolherem alguém conhecido ou reconhecido internacionalmente, optaram por estampar na capa da “Time” uma pessoa anônima, mas que representava milhares de pessoas que saíram às ruas ou ocuparam praças em diferentes partes do mundo – na Primavera Árabe, onde milhões de pessoas em diferentes países lutaram pelo fim dos regimes autoritários e ditatoriais; nos movimentos de desempregados e indignados com a crise europeia em suas dimensões econômica e política; no movimento Ocupe Wall Street, que procurou mostrar a forte desigualdade social promovida pela concentração do capital financeiro.
As reflexões de Calligaris sobre a decisão da revista “Time” me trouxeram à memória a filósofa política Hannah Arendt, que construiu um conceito diferenciado para a palavra “ação”. Segundo ela, ação é uma atividade política que ocorre no espaço da pluralidade humana e que pressupõe o diálogo entre iguais, não sendo possível a sua manifestação no isolamento. Para Arendet, estar isolado é estar privado da capacidade de agir. Ela ainda afirma que, ao agirem no espaço público, as pessoas possibilitam a gestação de milagres, não num sentido religioso, místico ou transcendental, mas como “interrupções de uma série qualquer de acontecimentos, de algum processo automático, em cujo contexto constituam o absolutamente inesperado”. É a capacidade que homens e mulheres têm, por meio de palavras e atos (ação), de iniciar algo totalmente novo. Cada vez que o espaço público diminui (quando desaparece a capacidade humana de agir em conjunto), há um decréscimo do poder (visto como potencialidade e não como força), e com isso, se ampliam as possibilidades de manifestação da violência.
Elias Boaventura provocou muitos milagres, especialmente no contexto educacional piracicabano e da Igreja Metodista. Ele soube, como profeta e protestador, ocupar o espaço público para, num esforço comum com outros homens e mulheres, criar um mundo mais justo e inclusivo. No caso específico da Unimep, ele deixou um legado que está sintetizado na Política Acadêmica da instituição. Em outras palavras, o DNA da Unimep está intrinsecamente ligado à vida do professor Elias Boaventura. Em muitos textos que li sobre a sua morte, encontrei a pergunta: “quem dará continuidade aos ideais do professor Elias ou quem ocupará o seu lugar?”. A história tem me mostrado que ninguém ocupa o lugar de ninguém na trajetória da vida. Somos únicos e singulares. Cada um vive a sua própria história. Nesse momento, a pergunta deve ser outra: que contribuição temos para tornar o nosso mundo num lugar mais justo, acolhedor e com menos exclusão? Antes do professor Elias Boaventura, a cidade de Piracicaba e a Igreja Metodista já tiveram outros homens e mulheres que colocaram a causa pública acima dos interesses privados e que buscaram a construção de um mundo melhor. Depois dele, outros homens e mulheres continuarão a ser profetas e protestadores e lutarão por uma sociedade onde, como dizia Betinho, não haja seres sobrantes. Espero que eu e você, caro leitor e leitora, estejamos entre eles. Assim, honraremos a memória do prof. Elias Boaventura.
Clovis Pinto de Castro, Reitor da Unimep
Piracicaba, 28 de janeiro de 2012.