quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Elias Boaventura, profeta e protestador

“O Cristo que nos salva e nos inspira foi quem primeiro radicalizou. Seu grito de desamparo na Cruz, recusando o aconchego e a proteção do Estado, fez romper o véu do templo e quedar-se impotente o poder arbitrário ali representado na pessoa do Centurião que se viu obrigado a confessar a força do novo poder, da nova vida, do novo reino de justiça e paz. Quem consegue ver Cristo transfigurado não pode se instalar, construir tendas e desfrutar a delícia da brisa das altas montanhas, mas tem que se envolver no redemoinho dos vendavais, descer a serra e encontrar os emudecidos, os enlouquecidos, os estropiados, os empobrecidos para curar-lhes suas enfermidades. Tem que assentar à mesa com pecadores e publicanos, expulsar os vendilhões dos templos e eliminar as figueiras estéreis”.                (Elias Boaventura).

Hoje, o professor Elias Boaventura completaria 75 anos. Entretanto, duas semanas antes de completar mais um ano de vida, ele saiu de cena para atuar no palco da eternidade. Diante da morte de alguém, é comum a expressão popular: partiu para o descanso eterno. Não estou seguro se essa expressão se aplica ao professor Elias Boaventura. Quem o conheceu de forma mais próxima e intensa, sabe que ele sempre foi um ser inquieto e que se incomodava com situações de injustiça ou de exclusão. Pautou boa parte de sua vida por temas de interesse público. Era apaixonado pela vida e lutou incansavelmente pela concretização do “Bem Comum” (no latim: res publica). Sempre sonhou com um mundo mais humano, inclusivo e justo. A citação acima (que é um pequeno trecho do discurso do professor Elias Boaventura como paraninfo da turma de bacharelandos em Teologia de 1980 da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista) retrata um pouco de sua visão teológica e de sua opção ideológica. Tive a honra de ouvi-lo nessa ocasião, pois era um dos formandos. Depois, tive o privilégio de tê-lo como orientador do meu trabalho de conclusão do Curso de Especialização em Administração Escolar (Lato Sensu) e da minha dissertação de Mestrado em Filosofia da Educação, ambos cursados na Unimep. Mais tarde, ele foi um dos membros da banca do meu doutorado em Ciências da Religião. Portanto, tive a felicidade de ter a presença do professor Elias Boaventura em boa parte de minha formação acadêmica.
Por ocasião de seu ofício fúnebre, o Bispo Paulo Ayres Mattos afirmou que a principal característica do Elias era a sua dimensão profética. Na tradição judaico-cristã, o profeta era aquele que não se intimidava diante dos poderes constituídos e denunciava todas as formas de injustiça, corrupção e tudo aquilo que impedia o estabelecimento da paz (shalom, que no hebraico significa “bem estar social”). O profeta também anunciava o que precisava ser feito para melhorar as condições de vida e estabelecer a paz e a justiça. Era sempre alguém com carisma e com reconhecimento popular. Precisava ser duro em suas denúncias, mas, ao mesmo tempo, ser portador da esperança, anunciando que tempos melhores viriam.
Sendo assim, concordo plenamente com o Bispo Paulo Ayres – o professor Elias Boaventura foi um profeta. Essa característica o tornou um ser humano diferenciado e respeitado por muitos. Além de profeta, o professor Elias foi também um protestador, ou seja, sempre que podia mostrava a sua indignação protestando contra as situações de morte que ferem a dignidade humana e a vida em todas as suas dimensões.
No final do ano passado, Contardo Calligaris, em sua coluna semanal na Folha de São Paulo, relatou que a revista “Time”, como acontece há várias décadas, escolheu para a capa de uma de suas edições de dezembro “a pessoa do ano”, que em 2011 foi o “protestador” (The Protester). Ao invés de escolherem alguém conhecido ou reconhecido internacionalmente, optaram por estampar na capa da “Time” uma pessoa anônima, mas que representava milhares de pessoas que saíram às ruas ou ocuparam praças em diferentes partes do mundo – na Primavera Árabe, onde milhões de pessoas em diferentes países lutaram pelo fim dos regimes autoritários e ditatoriais; nos movimentos de desempregados e indignados com a crise europeia em suas dimensões econômica e política; no movimento Ocupe Wall Street, que procurou mostrar a forte desigualdade social promovida pela concentração do capital financeiro.
As reflexões de Calligaris sobre a decisão da revista “Time” me trouxeram à memória a filósofa política Hannah Arendt, que construiu um conceito diferenciado para a palavra “ação”. Segundo ela, ação é uma atividade política que ocorre no espaço da pluralidade humana e que pressupõe o diálogo entre iguais, não sendo possível a sua manifestação no isolamento. Para Arendet, estar isolado é estar privado da capacidade de agir. Ela ainda afirma que, ao agirem no espaço público, as pessoas possibilitam a gestação de milagres, não num sentido religioso, místico ou transcendental, mas como “interrupções de uma série qualquer de acontecimentos, de algum processo automático, em cujo contexto constituam o absolutamente inesperado”. É a capacidade que homens e mulheres têm, por meio de palavras e atos (ação), de iniciar algo totalmente novo. Cada vez que o espaço público diminui (quando desaparece a capacidade humana de agir em conjunto), há um decréscimo do poder (visto como potencialidade e não como força), e com isso, se ampliam as possibilidades de manifestação da violência.
Elias Boaventura provocou muitos milagres, especialmente no contexto educacional piracicabano e da Igreja Metodista. Ele soube, como profeta e protestador, ocupar o espaço público para, num esforço comum com outros homens e mulheres, criar um mundo mais justo e inclusivo. No caso específico da Unimep, ele deixou um legado que está sintetizado na Política Acadêmica da instituição. Em outras palavras, o DNA da Unimep está intrinsecamente ligado à vida do professor Elias Boaventura. Em muitos textos que li sobre a sua morte, encontrei a pergunta: “quem dará continuidade aos ideais do professor Elias ou quem ocupará o seu lugar?”. A história tem me mostrado que ninguém ocupa o lugar de ninguém na trajetória da vida. Somos únicos e singulares. Cada um vive a sua própria história. Nesse momento, a pergunta deve ser outra: que contribuição temos para tornar o nosso mundo num lugar mais justo, acolhedor e com menos exclusão? Antes do professor Elias Boaventura, a cidade de Piracicaba e a Igreja Metodista já tiveram outros homens e mulheres que colocaram a causa pública acima dos interesses privados e que buscaram a construção de um mundo melhor. Depois dele, outros homens e mulheres continuarão a ser profetas e protestadores e lutarão por uma sociedade onde, como dizia Betinho, não haja seres sobrantes. Espero que eu e você, caro leitor e leitora, estejamos entre eles. Assim, honraremos a memória do prof. Elias Boaventura.


Clovis Pinto de Castro, Reitor da Unimep
Piracicaba, 28 de janeiro de 2012.

As lições do professor Elias Boaventura

Elias é mais um granberyense notável transferido para a Igreja Triunfante, em sete de janeiro de 2012, mas como humanos e seus admiradores, a tristeza de não mais vê-lo é muito grande: "as pessoas não morrem, apenas deixam de ser vistas" (Nundes [Fernando Pessoa]). O que nos consola é saber que "... Jesus Cristo não só destruiu a morte, como trouxe à luz a vida e a imortalidade, mediante o evangelho" (2 Tm 1.10).
Apaixonado por sua "alma mater", Trombone, seu apelido entre os puritanos (candidatos à formação teológica no Granbery), aprendeu com o querido e controverso comunista prof. Irineu Guimarães, mas também com Mr. Moore, adepto do socialismo cristão, a defender a causa dos empobrecidos, dos mais fracos, dos marginalizados. Ele não encolhia a mão quando se tratava de apoiar alguém financeiramente ou até mesmo como avalista o que lhe causou vários prejuízos financeiros.
Solidário e defensor do cristianismo prático, como dizia Irineu, gostava de estar com as pessoas que costumava acolher em sua casa planejada e construída para receber os amigos, os granberyenses, os membros de seu partido político. Sylvana, sua esposa cuidadora e anfitriã perfeita, o apoiava incansavelmente nesse "ministério". Seriam as nossas casas o reflexo de nossas vidas?
Cumpriu dois mandados como reitor da UNIMEP (1978/1986) em um período em que o processo de transição político-social do país flutuava em distintas etapas: a definição do papel do Estado, novos partidos políticos, as Diretas Já. A ojeriza pelo socialismo era bastante forte.
Simples, mas ousado e sem temor, declarava-se socialista a quem quisesse ouvir: em plena sessão plenária em concílio da 5a. Região Eclesiástica da Igreja Metodista (nos anos 80, em sua saudação como reitor, no Auditório Verde da UNIMEP) e até mesmo na fundação do Setor Sudeste Paulista da Associação dos Granberyenses, no átrio da Biblioteca da UNIMEP (década de 1990).
Aberto ao diálogo, o reitor Elias costumava se reunir às segundas-feiras com a liderança da Universidade para conversar sobre questões institucionais e suas relações com a Igreja Metodista. Certa feita, numa clara demonstração de seu humanismo e empatia, leia-se – cristianismo prático - pediu ao grupo que tivesse complacência com um de seus assessores que passava por sério problema familiar. O comportamento ético exige de cada um o compromisso de colocar-se no lugar do outro.
A proposta dialógica de Elias é defendida por Habermas (1989) para quem o indivíduo atribui um sentido às suas ações e, graças à linguagem, é capaz de comunicar percepções e desejos, intenções, expectativas e pensamentos. O autor vislumbra a possibilidade de que, por meio do diálogo, o ser humano possa deixar de ser objeto para retomar o seu papel de sujeito.
Elias estimulou a criação da Associação dos Funcionários do Instituto Educacional Piracicabano (AFIEP), pois os docentes já estavam organizados. Ademais, contribuiu com suas palavras, atos e procedimentos para a institucionalização organizacional, imprescindível à estabilidade do processo participativo e democrático na construção cultural da UNIMEP: “os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos culturalmente neles” (Morin, 2000, p.25).
Pena que poucos aprenderam com o professor Elias a lição de que são as pessoas que constroem a história organizacional. Portanto, elas merecem todo o respeito e não devem ser tratadas como meros recursos ou como um dos itens da planilha de custos, o primeiro a ser cortado nas crises financeiras.
Elias não foi bem compreendido no exercício de seu pastorado e nem como reitor da UNIMEP. Ultimamente, sentia-se desvalorizado e triste.
Doente e cansado, não se deu conta de que as organizações somente valorizam as pessoas enquanto são produtivas; quando deixam de produzir ou deixam de ser úteis, são descartadas sumária e impiedosamente. É uma profunda negação dos valores humanos.
Fala-se muito em descobrir talentos, reter talentos, mas no fundo as organizações continuam a achar que os profissionais são peças de reposição: quando sai um, basta substituí-lo por outro. Mas quem irá substituir Elias Boaventura? Quem substituiu João Wesley? Mr. Moore? Beethoven? Tom Jobim? Ayrton Senna? Ghandi? Santos Dumont? Monteiro Lobato? Jorge Amado? Pelé? Allbert Einstein? Picasso?
Termino com a última estrofe da poesia “Agora”, de Myrthes Mathias:
Se queres me fazer feliz, faze-me agora.
Para que chorar de remorso e saudade?
Custa tão pouco a felicidade,
Dá-me uma flor antes que eu vá embora!


Granberyensemente,
Arsênio Firmino de Novaes Netto